
— Certa vez, o sol ficou por muito tempo sem aparecer. A noite se prolongou, muito escura, sem estrelas, sem vento e sem barulho. Nem um pio. Nem o farfalhar de folhas. Tudo em silêncio. Não se ouviam nem os bichos, nem nada. O tempo ficou suspenso — começou Carolina, a contadora oficial da turma.
A menina caçula, Helena, não gostava muito de escuro e, aos poucos, foi se aproximando de sua prima mais velha, Andressa. Não podia confessar que já estava com medo — não tão rápido. Afinal, fora ela mesma quem pediu e convenceu o grupo a ouvir aquela história, e a única condição que Carolina impôs foi que apagassem as lanternas, para entrar no clima da escuridão.
Naquele feriado, tinham transformado o quarto das meninas numa tenda digna de “As Mil e Uma Noites”. Encostaram as camas na parede, forraram o chão com colchonetes, mantas e travesseiros, e cobriram tudo com lençóis.
Na primeira noite, Carolina contou sobre a esperteza de Sherazade, que, com suas histórias, escapou da sentença de morte e enrolou o rei por mil e uma noites, até que ele se apaixonasse e revogasse a lei que a ameaçava.
Na segunda noite, falou sobre Aladim e Ali Babá e os quarenta ladrões.
Na terceira noite, ia narrar as aventuras de Simbad, o Marujo, e a história do Cavalo de Ébano, mas Helena se revoltou.
— Não quero ouvir todas as mil histórias de uma vez! — protestou, sentando-se ao lado das primas. — Hoje quero uma história bem diferente… uma de encantamento!
Andressa franziu a testa.
— Como assim? Mais encantamento que as de As Mil e Uma Noites? São cheias de magia, principalmente as que têm gênios, como a do Aladim.
— Simbad! Simbad! Simbad! — interrompeu Rafael, ansioso para ouvir as aventuras do marujo pelos mares desconhecidos.
— Quero uma com encantamento da natureza! — insistiu Helena, batendo o pé. Para sua surpresa, Carolina concordou.
— Tem razão! Não vamos gastar todas as histórias de uma vez. Tenho uma perfeita para hoje… mas só se vocês aceitarem desligar a lanterna — pediu a contadora, enquanto lá fora chovia forte, numa noite sem estrelas. — Quero que fique bem escuro!
Estavam assim quando Helena segurou o braço de Andressa e Carolina prosseguiu:
— Parecia que o dia não ia voltar nunca mais. As pessoas estavam com fome e frio porque não conseguiam fazer nada no meio da escuridão — nem caçar, nem coletar alimentos.
Para piorar, em vez de chegar o novo dia, veio uma chuva persistente que não parava mais. Ela inundou tudo, e muitos animais acabaram morrendo.
— Não sei se estou gostando dessa história… A gente podia voltar pra do Simbad… — reclamou Helena.
Os outros, porém, pediram silêncio. Agora estavam curiosos.
— Deixa ela continuar! — disse Rafael.
Carolina retomou:
— A chuva, além de provocar os estragos da inundação, infiltrou-se no fundo de uma gruta subterrânea, até alcançar e acordar uma cobra que dormia havia muito, muito tempo. Quando despertou, já estava faminta. Como era o único animal acostumado a enxergar na escuridão, aproveitou-se disso para caçar sem dificuldade. Foi devorando tudo o que encontrava, até ficar satisfeita. Depois, decidiu comer apenas a parte que mais lhe apetecia: os olhos dos bichos. Adorava as pupilas brilhantes.
— Bleah! — reclamou Rafael, imaginando o gosto.
— O nome dessa cobra era boiguaçu — continuou Carolina.
— É em tupi, não é? — perguntou Andressa, lembrando-se de já ter ouvido a palavra.
— Isso. Quer dizer “cobra grande”. Mboi é cobra, e guassu é grande — confirmou Carolina. — É do nosso folclore, como a mula sem cabeça.
— Não é melhor acender a luz? —Pediu Helena. — Tá meio assustador…
— Por quê? Tá com medinho que a boiguaçu vai te pegar? — provocou Rafael, cutucando a prima.
— Alguns dizem que os olhos que ela comia brilhavam porque guardavam a luz do último dia em que os animais viram o sol. Eles brilhavam por dentro de seu corpo e, com o tempo, ela foi ficando transparente.
— Nossa! — exclamou Andressa.
— Mas essa mania de só comer olhos enfraqueceu a cobra. Ela deixou de se alimentar de coisas mais substanciosas e passou a comer apenas algo frugal, que não enchia a barriga. Foi ficando cada vez mais fraca e com a pele mais transparente… até se transformar no Boitatá: uma bola de fogo, um clarão vivo. Mboi é cobra e tatá é fogo.
— Eu sei! Boitatá é aquele que protege as matas contra incêndios! — lembrou Andressa.
Carolina continuou:
— A cobra de fogo morre e reaparece nas matas como uma serpente de couro transparente e olhos como dois faróis. Quem encontra esse ser fantástico pode ficar cego, morrer ou até enlouquecer.
— Principalmente se maltratar a natureza! Completou Helena.
Confira mais conteúdos: